sexta-feira, 31 de julho de 2015

O replicante de Blade Runner e a velhice

Por Vilma Pavani

Minha infância, no interior paulista, foi povoada de velhos. Penso nos meus vizinhos e não consigo lembrar de uma casa onde não houvesse um avô ou avó pelo menos. Ou uma tia solteirona. Era comum que mesmo as casas mais pobres tivessem um puxadinho nos fundos para abrigar os agregados. Um irmão do meu avô, com problemas mentais, ficou ao Deus dará com a morte dele, acontecida em outra cidade. Viviam juntos apenas os dois e ninguém queria ficar com o “tio” maluquinho, mas botar em um asilo nem pensar. Fizeram uma reunião, em Marília, onde vivia a maioria da família. Muita conversa vai , muita conversa bem, até que um irmão da minha mãe decidiu-se: “Se o problema é um lugar pra dormir e um prato de comida, deixem que eu resolvo”. E lá se foi o Cesário, barulhento, já velhusco, às vezes teimoso feito uma mula mas quase o tempo todo um tipo alegre e sociável, morar em uma edícula nos fundos da casa do meu tio, onde viveu por mais dez ou quinze anos, de modo decente e confortável. Cesário tinha coisas de menino, aparecia na casa da gente falando alto e se enfiando na mesa na hora do almoço, e muitas vezes queria ser útil e bagunçava mais do que ajudava. Aporrinhava, sim, mas resmungávamos e ficava por isso mesmo.

E nos fundos do meu quintal havia uma espécie de vilinha onde só viviam japoneses. Eles mantinham seus velhos (e como tinha japonês velho!) em casa: eles eram reservados e muitas vezes malcriados com as noras, genros e netos, mas ninguém dava um pio contra eles – ao menos em voz alta.
Tive uma tia que acabou internada num asilo, irmã de meu pai, mas era uma pessoa meio louca, imprevisível, com momentos agressivos. As freiras que tomavam conta do lugar avisavam meu pai durante as crises e lá ia ele, duas, três vezes na semana, visitar tia Maria. Como ele fazia não sei, mas conseguia acalmá-la e ainda achava tempo para consertar telhados e móveis da instituição. Minha mãe brincava dizendo que só Jesus estava acima dele entre as religiosas.
Perdi a avó paterna aos cinco anos, pouco lembro dela. Mas morou com meus pais, claro, desde que ficou viúva, até morrer. Baixota, magra e ignorante, como a maioria dos imigrantes italianos que vieram do campo, tinha modos ditatoriais e minha mãe deve ter sofrido nas mãos dela, pelo pouco que sei. Já minha avó materna era uma mulherona falante, gorda e alta, fofoqueira pra dedeu. Hoje posso dizer que era uma “avó itinerante”: teve sete filhos e vivia na casa de cada um pelo tempo que lhe convinha, ficando às vezes dois e às vezes até seis meses. Os filhos, genros e noras suspiravam conformados quando ela comunicava (sem nunca pedir permissão) que ia chegar, de mala e cuia. Aliás, nem tinha cuia, apenas carregava suas coisas pessoais. Os filhos que cuidassem de alimentá-la, arrumar médico, dentista, cabeleireira. Eu a detestava por conta da língua maligna e grudava no meu pai: onde ele ia (para fugir dela), eu ia atrás. Mas ele aguentava o tranco; afinal minha mãe também tinha aguentado a parte dela com a sogra.

Cresci sabendo que tinha de respeitar essas convenções. Mamãe, que nunca quis morar com ninguém depois de viúva, foi diariamente visitada pelo meu irmão e/ou cunhada até o fim da vida. Minhas duas irmãs e eu tínhamos vindo embora para São Paulo, mas sempre havia uma de nós na casa dela, em férias, feriados, natais.

Particularmente, só depois dos 50 anos me dei conta de que também estava ficando velha. Sem filhos, não teria ninguém para cuidar de mim. No fundo, até achava que se preciso meus irmãos dariam um jeito, me colocariam em algum lugar. Mas parecia um universo tão distante ... Velhice era coisa pros outros, não para mim.
Por sinal sempre achei graça na tia de uma amiga, velhinha de mais de 80, muito econômica, e que quando lhe diziam que devia gastar um pouco mais, viajar, jogar bingo, sei lá, aproveitar a vida, respondia: “Não posso, estou guardando para minha velhice”.

Ultimamente, tenho visto muitos velhos – até porque eles são a minha geração, oras – e muitos vivem sozinhos ou mesmo se tornaram mantenedores de filhos e netos. Triste realidade a nossa... São em geral tratados como estorvo, mesmo quando suas economias ajudam a sustentar escolinhas e o lazer das crianças. Felizmente, também há aqueles que continuam ativos, depois dos 60 ou 70, trabalhando e se virando por si próprios. Fazem cursos, se distraem, nem que seja indo ao médico! Esses são felizardos.
No meu caso, como sempre trabalhei, não me dei conta de que a idade batia à porta. Mas em algum momento tive de cair na real. Hoje, com 66, observo as pessoas no metrô, na rua, no cinema, buscando a minha “turma”;  e a não ser no caso dos visivelmente ricos, vejo que a qualidade de vida dos idosos mudou bastante – no meu entender, pelo lado “humano”, para pior. Ninguém tem muito tempo para eles. Não vejo filhos e netos acompanhando-os. Também fico de olho na minha vizinhança, e raramente vejo velhos morando com a família. Pela primeira vez, sinto receio. Não da morte, mas de como viver até lá sem ser estorvo. Tudo que quero – olha a ironia – ... é morrer “saudável”, isto é, ir embora de repente, sem tempo nem pra dar tchau a quem fica. Pavor de ficar entrevada numa cama, incapacitada de locomoção, ou pior, nas trevas do Alzheimer. Tenho pena dos velhos, como tenho dos cães e gatos abandonados.
Penso sempre no filme “Blade Runner, O Caçador de Androides”, em que um grupo seleto de replicantes se revolta por conta suas vidas breves, com prazo determinado de validade. No final, o líder deles, Rutger Hauer, uma figura magnífica, no auge de sua beleza e masculinidade, se conforma com a morte , mesmo sem concordar com ela. E sua tristeza fica clara numa breve fala, diante do seu “caçador”, Harrison Ford (também num de seus momentos máximos) e cujo conteúdo jamais esquecerei. Ele diz assim: “Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Um ataque de naves em chamas no Cinturão de Orion. O brilho de raios-C na escuridão, perto do portão de Tannhauser. E todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. É hora de morrer”. E morre mesmo. Chorei e choro sempre que vejo a cena.

Bem, mas na época em que vi o filme (de 1982) eu entendia o replicante: tanto conhecimento e morrer assim, tão cedo, bestamente, parecia horrível. Mas hoje leio as notícias, olho as pessoas à minha volta, com suas vidas pela frente, em um mundo que só se complica conforme amadurecemos, e não entendo porque fazemos questão de viver além de certo tempo, ou ter esperança de passar adiante o que aprendemos e vivemos. Quem se importa?
Lá pelas tantas a gente sabe que nada de muito fundamental vai mesmo acontecer conosco. Francamente, bem que eu gostaria de poder decidir e, de livre e espontânea vontade, olhar um dia para um ponto qualquer na noite e dizer: “Hora de morrer.” Quem sabe brilhar por um momento e fim.


A cena final 



 Blade Runner - O caçador de Andróides - 1h57
 Direção: Ridley Scott


Vilma Pavani é jornalista, está ficando uma velhota ranzinza e acha que existem basicamente dois prazeres na vida ao ver um filme: falar bem ou falar muito mal!

2 comentários:

  1. Vilma, seu texto traz uma boa dose de amargura, sim, mas Blade Runner também traz. A efemeridade da vida sempre nos fará sentir assim, seja a vida curta ou longa... Nem por isso deixa de ser extraordinária (eu sei que você sabe disso!) e o filme também. Ótimo seu texto.

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